SETEMBRO AMARELO

Entrevista: saúde mental e trabalho

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No mês de setembro acontece a campanha Setembro Amarelo, de prevenção ao suicídio. Para além desta data, o IFPR busca, por meio de suas ações de Ensino, Pesquisa e Extensão nos campi, e também por meio de ações institucionais, promover o debate sobre a saúde mental entre os membros da comunidade acadêmica, incentivando práticas que promovam o autocuidado e o bem-estar.

Nesta entrevista, o médico do trabalho Ricklay Moraes, do Subsistema Integrado de Atenção à Saúde Servidor (Siass UTFPR-IFPR) — órgão ligado à Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas (Progepe), que tem entre suas funções o desenvolvimento de atividades de promoção, prevenção e acompanhamento da saúde dos servidores —, fala sobre saúde mental e a relação que o trabalho pode ter com a sua manutenção. Confira!

Diretoria de Comunicação – Quais são os sinais que o corpo e a mente dão quando algo não vai bem em relação à saúde mental?

Dr. Ricklay Moraes – Se pensarmos no corpo humano como um sistema no qual muitos órgãos e estruturas se integram, interagindo conforme cumprem as suas funções, podemos certamente fazer uma analogia com uma fábrica. Tendo esse conceito em mente, pensemos em uma situação em que a linha de produção está sobrecarregada, processando demandas além daquelas que foram preparadas para trabalhar. Eventualmente, um alarme pode disparar, caso a linha trave ou um acidente aconteça. Esse alarme pode ser sonoro, visual, térmico, entre outros. No caso da nossa saúde mental, existem muitos sinais e sintomas que são frequentemente observados em indivíduos que estão passando por períodos em que a mente não está em ordem, ou seja, está perdendo a saúde. Eu diria, conforme aprendi com meus colegas da Psiquiatria, que a mudança persistente de comportamento é um dos alertas mais importantes. As dificuldades de memorização, a falta de concentração e as compulsões também podem ter esta relação. Eu diria, ainda, que alterações súbitas e intensas de humor precisam ser muito bem observadas e analisadas, visto que são um forte indicador de que a saúde mental está sob ameaça ou em agravo. Existem, também, manifestações clínicas somáticas, corporais, que podem entrar nesse contexto. Os estados de ansiedade e de depressão podem ser percebidos fisicamente, traduzindo aquilo que não está indo bem dentro da mente. Alterações de postura e de frequência respiratória, palidez, sudorese, encaixam nisso, por exemplo.

Diretoria de Comunicação – O que uma pessoa pode fazer quando perceber que algo não vai bem com a sua saúde mental? Quais são os profissionais mais indicados para buscar ajuda?

RM – Se me permite, gostaria de aproveitar para fazer um estímulo às boas práticas de promoção da saúde. Digo que devemos buscar os profissionais de saúde não somente quando a saúde não vai bem, mas inclusive quando estamos nos sentindo bem nesse aspecto da vida. Isso é buscar manter a saúde, em vez de recuperar o que foi perdido, o que geralmente é mais complexo. Pois bem, ao perceber que algo não está indo bem com a mente, mesmo que não consiga definir bem o que está acontecendo, a pessoa com esta percepção deve sem dúvida alguma procurar o auxílio de profissionais capacitados e habilitados para o necessário cuidado com a saúde mental. Esses profissionais da área da saúde precisam conhecer os transtornos mentais, com propriedade, para que a conduta terapêutica seja adequada ao quadro clínico, buscando sua reversão da melhor maneira possível. Atualmente, a saúde passa por grandes mudanças estruturais. O modelo de atenção à saúde mental vem mudando muito, no sentido de que o indivíduo que necessita deste tipo de cuidado tende a ser acolhido de forma multiprofissional, com diversos olhares incidindo sobre o problema e objetivando atingir o todo dos fatores causais do adoecimento. Isso é um ganho enorme. Entretanto, se pensarmos em um direcionamento para avaliação especializada, psiquiatras e psicólogos são os mais indicados e referenciados para tal abordagem.

COM – Que aspectos do ambiente de trabalho podem influenciar de forma negativa a saúde mental do trabalhador? E de forma positiva?

RM – De fato, o ambiente de trabalho é, como muitos trabalhadores dizem, a “segunda casa”. Nele geralmente passamos em torno de oito horas de nossos dias. Então, só pelo tempo em que permanecemos no ambiente laboral, já precisamos considerá-lo como um forte fator de influência em nossa saúde, positivamente e negativamente. Alguns detalhes do ambiente de trabalho podem ser listados como importantes neste contexto. A influência negativa ocorre pelos ambientes de trabalho nos quais as evidências são de interfaces que causam sobrecarga física ou mental, restrições para aproveitamento do potencial criativo individual e coletivo, jornadas prolongadas, ausência de treinamento adequado para o desempenho das funções, entre outros. Ao contrário, penso que as boas relações interpessoais construídas por conta das atividades laborais, o bom entendimento de cada trabalhador no que se refere ao significado e importância de seu próprio labor, a curva de aprendizagem das tarefas ocorrendo de maneira a considerar as limitações individuais, são bons exemplos de evidências de que aquele ambiente de trabalho pode agir positivamente sobre a saúde mental.

“As boas relações interpessoais construídas por conta das atividades laborais, o bom entendimento de cada trabalhador no que se refere ao significado e importância de seu próprio labor, a curva de aprendizagem das tarefas ocorrendo de maneira a considerar as limitações individuais, são bons exemplos de evidências de que aquele ambiente de trabalho pode agir positivamente sobre a saúde mental”.

COM – Para muitas pessoas, o uso de remédios e realização de terapia para tratamento de doenças mentais são um motivo de vergonha. Como superar esse sentimento?

RM – Certamente se trata de um estigma a ser eliminado em nossa sociedade. Creio que essa dita “vergonha” tem raízes históricas, lá nos primeiros passos da ciência médica em relação ao tratamento dos transtornos mentais. O isolamento dos doentes foi, durante muito tempo, a primeira escolha. E isso gerou uma percepção geral errônea, de inadequação destes indivíduos à participação na vida social. Muitos podem ter assimilado este conceito dentro de suas estruturas familiares, infelizmente. Acreditam que ao necessitarem de tratamento medicamentoso ou de psicoterapia, como parte da conduta para a recuperação da sua saúde mental, passam à condição de diferentes, incapazes, reduzidos, sendo, portanto, motivo de vergonha. Considerando isto, penso que a superação desse sentimento pode ocorrer à base de muito diálogo. Uma conversa honesta e franca consigo e com os outros. Reconhecer suas necessidades e apresentá-las às pessoas de confiança pode reduzir a angústia de estar guardando esse “segredo”. A autoconfiança virá à medida que o tabu for quebrado, e a vergonha passará a não ter motivo para existir. Obviamente, poderão ocorrer situações de preconceito e discriminação, mas um indivíduo consciente de suas próprias necessidades é mais forte neste enfrentamento. Uma boa notícia é que, com a facilidade para as trocas de informação e formação de grupos de apoio na internet, com muitas ferramentas de diálogo, esse estigma está sendo destruído e as doenças de natureza mental estão aos poucos sendo vistas de uma outra forma. Muitas pessoas de destaque no mundo, pacientes e cuidadores, têm se manifestado publicamente sobre suas próprias experiências e isso tem fortalecido aqueles que antes se sentiam sozinhos e envergonhados.

COM – O mesmo pode ser dito sobre as percepções negativas que podem surgir da necessidade de afastamento do trabalho para cuidar da saúde mental?

RM – O individualismo pregado em nosso tempo, como ferramenta essencial de sobrevivência, gera esse paradoxo. Ou seja, ao mesmo tempo em que leva muitos a fazerem de tudo para se destacarem individualmente na sociedade, torna fraco aquele que tira um tempo para verdadeiramente cuidar de si. Lidar com isso, com esse sentimento de fraqueza, não é fácil. A maioria de nós vive hoje em ambientes extremamente competitivos, em especial os organizacionais. Dizem os “chefes” que a escalada organizacional exige manter sempre o passo acelerado, para chegar ao topo no momento certo. Entretanto, como profissional de saúde, penso inteiramente diferente. Gostaria, neste ponto, de fazer outra breve analogia com o alpinismo. As grandes montanhas não são escaladas de uma vez. Quem chega lá, no alto de tudo, tem que parar várias vezes no meio do caminho, nas bases ou acampamentos, onde se recupera o fôlego, a energia. Recuperado o bastante, o montanhista segue em frente. É preciso enxergar a “retirada estratégica” como uma vantagem, não como um fracasso.

Diretoria de Comunicação – Como as organizações podem se preparar para abordar esses temas junto aos trabalhadores?

RM – No âmbito da saúde ocupacional, muitas organizações têm desenvolvido formas interessantes e eficazes para evitar que os fatores psicossociais causem adoecimento mental em seus trabalhadores. Grande parte dessas ações é preventiva e baseada no diagnóstico e correção das situações de constrangimento e sobrecarga que podem estar presentes no ambiente de trabalho. Assim, os gestores das organizações precisam expandir suas percepções para o fato de que as relações de cada trabalhador com o seu trabalho (e com os demais trabalhadores) é capaz sim de adoecer os indivíduos inseridos naquela realidade, mas também é capaz de promover saúde. Objetivando esta última possibilidade, é essencial realizar mudanças positivas, favorecendo o trabalho em equipe, a criatividade, o senso de que há um todo, e não divisões, grupos. Se sentir parte da coletividade é importantíssimo para o ser humano. Desenvolvida essa “política”, são muitas as maneiras possíveis para fazer a sua implantação e execução. Podemos pensar em informativos, rodas de conversa, palestras, por exemplo. A abertura de canais de diálogo direto com os trabalhadores, para que possam externar seus sentimentos sobre seu trabalho, também é essencial. Ou seja, acredito que o ponto principal é “ouvir” e saber o que fazer com o que “ouvir”. No meu entender, a Psicologia tem papel crucial nesta preparação. Profissionais desta área do conhecimento humano podem, sem dúvida, usar suas formações diversas para direcionar os esforços das organizações, otimizando recursos e reduzindo riscos.

“Os gestores das organizações precisam expandir suas percepções para o fato de que as relações de cada trabalhador com o seu trabalho (e com os demais trabalhadores) é capaz sim de adoecer os indivíduos inseridos naquela realidade, mas também é capaz de promover saúde. Objetivando esta última possibilidade, é essencial realizar mudanças positivas, favorecendo o trabalho em equipe, a criatividade, o senso de que há um todo, e não divisões, grupos. Se sentir parte da coletividade é importantíssimo para o ser humano”.

Diretoria de Comunicação – Quais estratégias podem ser adotadas para a promoção da saúde mental nos ambientes de trabalho?

RM – Como eu disse, a sinergia entre todos os atores presentes no contexto do ambiente de trabalho é fundamental nessa construção. Gestores e geridos devem criar relações de trabalho que sejam salutares para todos. É um comprometimento que precisa ser coletivo. Dentro de uma organização, espera-se que cada indivíduo tenha sua função bem determinada, mas que isso não lhe seja como uma prisão. Nascemos para a liberdade, para a engenharia (no sentido de sermos criativos). Não para o contrário. Na minha concepção de promoção da saúde mental nos ambientes de trabalho, a estratégia adotada deve levar isso em conta. Do ponto de vista prático, tenho observado que as organizações têm elaborado e implementado programas de promoção da saúde mental. Esta é certamente uma ótima estratégia, visto que documenta e torna institucional tais diretrizes, gerando uma cultura preventiva. Esta estratégia pode e deve ser somada aos princípios de prevenção e monitoramento inseridos no Programa de Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA) e no Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO), já usualmente presentes nas organizações, que seriam aprimorados com esta abordagem.