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Manifesto do NEABI (Núcleo de estudos Afro-Brasileiros e Indígenas) do Campus Palmas: um posicionamento diante dos acontecimentos no Brasil e no mundo

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Acreditar na humanidade, na sua alteridade e diversidade nos reconforta. Falamos de um acreditar constante, que por vezes intensifica nossas reflexões sobre a sociedade, sobre nós e os que estão à nossa volta. Ao passo em que nos preocupamos com a nossa vulnerabilidade diante dos desafiadores contextos de nossa sociedade, paramos para pensar sobre a vulnerabilidade do outro, que também nos afeta, material e emocionalmente. Compreendemos que não se importar com aquilo que afeta o outro, de tomar como naturais questões sócio históricas, é indício de frieza, de individualismo e de descrença nas nossas potencialidades coletivas e individuais. Como apontam diversos cientistas sociais, o processo civilizacional não é apenas linear. Ele pode sofrer retrocessos que podem ser verificáveis na relação que temos com as instituições e com os valores democráticos de uma nação, bem como na relação e no respeito que temos com o outro. Nossa luta se dá no sentido de crer na humanidade e na sua capacidade de reconstrução, vez ou outra em que a própria humanidade se mostra abalada.
Infelizmente, estamos vivendo momentos conturbados, em que as violências de várias ordens e os ataques à diversidade, à democracia, à divisão dos Poderes, às universidades públicas e à ciência parecem querer se impor. Vivemos uma pandemia causada pela COVID-19, que vitimou e continua vitimando pessoas em todas as partes do mundo e que colocou em evidência as opressões e as desigualdades sociais. A doença, sabemos, pode acometer indivíduos de qualquer classe social, no entanto, são os(as) mais pobres, os(as) trabalhadores(as) assalariados(as), as trabalhadoras domésticas, os(as) indígenas, os(as) pretos(as) e os(as) moradores das favelas e dos subúrbios das grandes cidades que mais serão afetados. De fato, já estamos sendo alertados quanto ao aumento do desemprego, da pobreza, da violência e da fome.
É nesse contexto, que assistimos, diariamente, aos fatos que se desenrolam no nosso país e no mundo. Queremos destacar alguns deles, pois são representativos, e deflagram, ao menos simbolicamente, o descaso e a violência que sofrem certos grupos sociais. Com isso, queremos chamar todos(as) para uma reflexão séria e necessária diante de atitudes autoritárias, antidemocráticas e desumanas.
Dentre tais fatos, destacam-se os oito minutos e quarenta e seis segundos, tempo de agonia de um homem preto norte americano que sucumbiu, sufocado, morrendo por asfixia. As imagens tomaram o mundo, e nelas pudemos ver como a asfixia se deu, provocada pelos joelhos de um policial branco norte americano em seu pescoço: oito minutos e quarenta e seis segundos. A pressão dos joelhos do policial no pescoço de George Floyd o deixou sem ar até que, finalmente, ele morresse. George Floyd, preto, 46 anos, morreu por ser negro numa sociedade extremamente racista. Suas últimas palavras foram: “não consigo respirar”. Alguém pode até dizer: “sim, mas ele tentou comprar cigarro com uma nota de 20 dólares falsa”. Para essas pessoas, infelizmente, resta a certeza de que em sua limitada visão de mundo, o dinheiro vale mais que a vida, e se a vida em questão é de um homem preto, a nota falsa ainda tem mais valor. George Floyd testou positivo para a COVID-19, mas não foi essa doença que o deixou sem ar, foi o racismo!
Outros(as) pretos(as) chegam à memória: o menino Miguel, de 5 anos, cuja mãe, empregada doméstica, preta, passeava com a cadela dos patrões enquanto Miguel, sob cuidados da patroa, caiu do 9º andar de um prédio e morreu. A patroa, presa em flagrante por homicídio culposo, logo foi liberada após pagamento de R$ 20 mil de fiança. E mesmo anestesiados pela indignação, seguimos acreditando que vidas não têm preço, mas, ao que parece, a do Miguel “custou” vinte mil reais. João Pedro, 14 anos, preto, baleado no complexo do Salgueiro, morreu de graça, sem notas falsas para justificar, nem fiança, nem nada, apenas mais uma operação da polícia no morro.
Nós acreditamos que a voz dos(as) manifestantes antirracistas têm ecoado em muitos lugares, e os apelos #paremdenosmatar, #vidasnegrasimportam, #nãoconsigorespirar, entre tantos outros, se juntam à indignação por essas mortes que assistimos estarrecidos. Elas se juntam às mais de quarenta e duas mil mortes notificadas causadas pelo novo coronavírus, só no Brasil, até ontem. A COVID-19 tem em seu rol assassino uma lista assustadora de vítimas, dentre elas, um adolescente yanomami, de 15 anos, um compositor e escritor de 73 anos, atores, engenheiros, pais de família, médicos, donas de casa, tantas vidas, tantos lares experimentando uma dor inexplicável.
Dizem que esse vírus não escolhe cor, idade ou classe social. Não precisa, a nossa sociedade já fez esse trabalho sórdido, já separou os(as) mais propensos(as) e aqueles(as) à morte. Nessa pandemia, os meninos e meninas, os homens e mulheres que o coronavírus não matar, a fome, o racismo, a desigualdade de oportunidades, o preconceito, a xenofobia, a homofobia, o feminicídio… estarão fazendo sua parte, matando!
Para além de tais acontecimentos, que afetaram não apenas indivíduos isolados, mas grupos e famílias, destacam-se outros fatos que chamam nossa atenção para descaminhos que devem ser combatidos. Um fato se refere à decisão do Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos em retirar dados referentes à violência policial, e cujo aumento aponta para violação dos direitos humanos por policiais, de relatórios da Pasta. Novamente, diferentes órgãos e associações se pronunciaram apontando o quanto a decisão é prejudicial à criação de políticas públicas, à democracia e ao compromisso com a população deixando-a ainda mais vulnerável.
Outro fato refere-se à recontagem dos mortos pela COVID-19 anunciada pelo Ministério da Saúde, após a queda de dois ministros e agora sob o comando de um general, colocando em xeque os dados que por si só são alarmantes e passaram a ser duvidosos. No momento em que organismos internacionais e associações de classe se mostravam preocupados com o índice de subnotificação das mortes e dos casos de COVID-19, ao considerarem que o Brasil é um dos países que menos realiza testes para a detecção do vírus, setores do Ministério argumentavam que os números poderiam ser fantasiosos e manipulados. Numa tentativa antiética e desumana em provocar invisibilidade aos mortos pela doença, tal postura causou mais desespero às famílias que recém haviam enterrados seus mortos.
Por fim, devemos lembrar do ataque ao protesto silencioso organizado pela ONG Rio da Paz, no Rio de Janeiro. Com covas e cruzes fincadas nas areias da praia de Copacabana; O objetivo era chamar a atenção para o grande número de mortes ocasionados pela COVID-19. As cruzes, todavia, foram derrubadas por aqueles que ainda acreditam que os números de mortos são fantasiosos. Num gesto de denúncia à explícita falta de respeito, corajosamente, um homem que há pouco havia perdido o filho pela doença novamente as erguia. O ataque violento, sob ponto de vista simbólico, aos manifestantes, não foi diferente do ataque aos profissionais da saúde, que em maio deste ano, enquanto manifestavam sua corajosa presença na luta contra a COVID-19, foram vergonhosamente ofendidos por pessoas que destilam ódio a todos aqueles que ainda respeitam a vida. Esse é o cenário: a dor do luto atravessada pela dor da indiferença, do descaso e do desrespeito! A força para lutar contra tudo isso, embora difícil, é possível.
Em que pese tais acontecimentos, nesse momento, temos de refletir e render nossas homenagens aos(às) mortos(as): pais, mães, avôs, avós, filhos(as), amigos(as), vizinhos(as), trabalhadores(as), famosos(as) e anônimos(as) que nos deixaram e, assim, tentar compreender que não conseguiremos atingir nossa humanidade plena enquanto a humanidade do próximo for marcada por mortes que podem ser evitadas. Mas também temos de lembrar das potencialidades da humanidade para a construção de uma sociedade, de fato, justa, ética, democrática e igualitária. Uma sociedade em a que a diversidade, a alteridade, a dignidade e o respeito sejam valorizados sempre, garantindo uma vida vivível.
Palmas-PR, 15/06/2020